Rui

100 anos depois…

Bolívar Lamounier
“Rui Barbosa e a construção institucional da democracia brasileira”

Em 1999, por ocasião das comemorações dos 150 anos de nascimento de Rui Barbosa, publicou-se o ensaio do cientista político Bolívar Lamounier intitulado “Rui Barbosa e a construção institucional da democracia brasileira” em Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, p. 49-123, fotografias de Cristiano Mascaro.

Em 2023, quando se completam 100 anos da morte de Rui, a Fundação Casa de Rui Barbosa encontra no ensaio de Lamounier observações pertinentes e esclarecedoras sobre o papel de Rui na construção de nossas instituições.

Essas observações levam a público uma visão imparcial e inteligente de Rui Barbosa. Com elas, rende-se homenagem ao patrono da Casa nos 100 anos de sua morte.

Rui: figura controvertida
“Em 1924, um ano após a morte de Rui, escrevia Vicente Licínio Cardoso que não houvera no país ‘calma suficiente’para que se pudesse empreender uma crítica equilibrada, ‘tal o excesso do elogio aos seus méritos, e tal a violência no relato de alguns dos seus erros’. Mais 25 anos se passaram e voltava San Thiago Dantas à mesma tecla, em suas celebradas conferências de 1949, dizendo que a plena compreensão da figura de Rui Barbosa não poderia ser alcançada enquanto perdurasse aquela tendência à detração e ao louvor igualmente desmedidos.” (p. 51)

O perigo da “folclorização” de Rui
“Foi justamente aí – nessa folclorização da figura de Rui, na lenda que em torno dele se formou, que Rui começou a mirrar na consciência das gerações que o sucederam. Quanto mais exaltávamos esses traços por assim dizer exteriores de sua figura, mais o perdíamos como ideia e como conteúdo – ou seja, como pensador e protagonista de primeiro plano no debate substantivo dos problemas brasileiros.

“Homem culto e até hoje nosso principal símbolo de cultura jurídica, Rui Barbosa foi, ao mesmo tempo, protagonista político de primeiro plano: uma vigorosa combinação, portanto, de logos e pragma, e este é o ponto cuja importância parece ter escapado a muitos dos que estudaram sua trajetória.” (p. 52)

Para compreender Rui adequadamente
“[…] uma compreensão adequada do protagonismo histórico e da permanente relevância de Rui Barbosa exige o cumprimento de dois requisitos prévios. O primeiro diz respeito, naturalmente, ao conteúdo do pensamento de Rui Barbosa: como situá-lo no quadro político e ideológico de sua época? O segundo, não menos importante, é uma reflexão sobre o conceito de construção institucional, removendo o entulho ideológico que sobre ele se acumulou e dissolvendo em definitivo a aura de mero ‘formalismo jurisdicista’ que em torno dele se criou.” (p. 53-54)

Rui e a construção institucional
“Para Oliveira Vianna, as mazelas sociais e políticas decorrentes da colonização deviam ser entendidas como ‘cultura’, o que, para ele, equivalia a terem se transformado em destino. Para Rui Barbosa, ao contrário, elas eram o ambiente inevitável da ação política e matéria-prima sobre a qual haveria de trabalhar a construção institucional: ambiente terrivelmente adverso, sem dúvida, mas não tão adverso quanto outro que a elas acrescentasse o sacrifício definitivo da liberdade.” (p. 60)

“[O aspecto em que mais esplende a obra de Rui Barbosa é] a poderosa articulação, retórica e política, de um plano de construção institucional.” (p. 67)

Rui e a Abolição
“De fato, abolicionista da primeira hora, os primeiros discursos de Rui, compreendidos entre a conferência estudantil de 1869 e o começo da oratória parlamentar, haviam sido de uma invulgar contundência, e mantivera-se ele severamente crítico, até o fim da vida, da abolição feita sem uma política de recapacitação e de integração social dos ex-escravos.” (p. 67)

Rui e a questão social
“Na conferência de 1919 sobre a questão social, ele declara, explícita e taxativamente, que o individualismo jurídico haveria de ser ‘restringido por uma extensão, cada vez maior, dos direitos sociais’; e chega, por esse caminho, com 32 anos de antecedência, a uma formulação rigorosamente idêntica à que Thomas Marshall tornaria clássica em seu ensaio de 1951 sobre os três componentes – civil, político e social – do conceito de cidadania.” (p. 70)

Rui e o desenvolvimento nacional
“[…] Rui Barbosa teria sido um homem tão preocupado com a ‘estabilidade’ – ou seja, com a efetiva construção do Estado nacional e a afirmação de sua irrenunciável soberania sobre a moeda – quanto os seus detratores positivistas e autoritários; mais que isso, um desenvolvimentista avant la lettre, optando arrojadamente pela deflagração de um processo de industrialização e diversificação produtiva, contrariamente ao fatalismo colonialista e à xenofilia que tantos críticos se comprazem em lhe imputar.” (p. 72)

Sobre a política financeira de Rui
“[Na interpretação de Aliomar Baleeiro, este era] o propósito político implícito na política financeira de Rui: proteger a nascente República contra o risco, por um lado, de uma tentativa de restauração monárquica por parte de fazendeiros prejudicados pela Abolição, e, por outro, de um pretorianismo, ainda larvar, mas que poderia se tornar virulento caso se alastrassem certas insatisfações já perceptíveis no meio militar.” (p. 76)

“Conservador, ou seja, ortodoxo, em economia, Rui certamente não foi. Tampouco compartilham esses autores [San Thiago Dantas, Aliomar Baleeiro, Clóvis Ramalhete e Gustavo Franco] a visão – popularizada já a partir daquela época – de que a turbulência financeira dos primórdios da República dever-se-ia às alegadas ‘inexperiência’, ‘ingenuidade’ e ‘tendência a imitar’ modelos estrangeiros do ministro Rui Barbosa.” (p. 79)

Rui: idealista utópico?
“Da primeira metade dos anos 20 à década de 1950 […] a direita e a esquerda autoritária convergiram substancialmente na crítica ao ‘idealismo utópico’ da Constituição de 1891 e a todo o pensamento liberal-democrático do qual Rui fora expoente em seus escritos e em sua oratória parlamentar.” (p. 80)

Republicano ou monarquista?
“Quanto às suas ideias políticas, Rui Barbosa nunca escondeu que foi republicano de última hora. É certo que a cabeça e o coração o levavam a admirar profundamente o sistema inglês, mais até que o americano. Engana-se, porém, quem julgar que fora monarquista por princípio; e mais ainda quem se fiar na ladainha de que vivia enfeitiçado por tais fórmulas, ‘só por serem estrangeiras’, ou de que as ‘reificava’, imaginando que alguma excelência intrínseca as faria funcionar a contento em qualquer latitude. Rui aceitava, sim, a monarquia, mas não a ponto de sobrepô-la ao seu ideal abolicionista, democrático e federativo.” (p. 82)

“Rui declarou em diversas ocasiões que somente aderiu ao golpe republicano quando se convenceu de que a monarquia não abriria caminho ao federalismo.” (p. 83)

A luta contra o autoritarismo
“[Rui] não endossou nunca o modelo autoritário, inspirado na filosofia positivista de Augusto Comte, que a Constituição castilhista havia implantado no Rio Grande do Sul, e não tardou em assumir, de peito aberto, a luta pela ‘revisão constitucional’, cujo objetivo seria justamente corrigir esse e outros excessos que começavam a se manifestar sob o manto ambíguo da Carta de 1891.” (p.85-86)

Sobre o presidencialismo norte-americano
“[Rui defendia a tese] de que a acentuada descentralização administrativa da federação norte-americana não impedia que os Estados Unidos fossem, politicamente, ‘um país de centralização tal que nem as realezas europeias, a este respeito o igualam’.” (p. 86)

[Citando Rui, a este respeito]: “Centralização política significa simplesmente a concentração vigorosa, nas mãos do poder central, dos interesses coletivos, que abrangem a nação inteira, na sua coesão intestina e na sua representação exterior. Desde que a autoridade da União enfeixa o direito exclusivo de celebrar a paz e a guerra, pactuar tratados, levantar exércitos, equipar esquadras, cunhar moeda, organizar o serviço postal, abrir vias interprovinciais, estatuir certos princípios imprescindíveis à solidariedade nacional e à tranquilidade pública na legislação econômica e civil, e manter, mediante uma alta judicatura federal, a supremacia da Constituição contra o particularismo dos estados, a centralização política é rigorosa, profunda e absoluta.” (Campanhas jornalísticas, p. 217)

Rui e a “política dos governadores”
“O mais difícil desafio que se impõe ao estudioso da Primeira República é, sem dúvida, como chegar a uma avaliação equilibrada da chamada ‘política dos governadores’, implantada por Campos Sales (1898-1902). […] Exercendo férreo controle sobre a Comissão da Câmara Federal que reconhecia a validade da eleição de deputados, o Executivo se comprometia a não reconhecer aqueles que não fossem do agrado dos governadores. Ficavam estes, por conseguinte, com carta branca para lidar como bem lhes aprouvesse com suas respectivas oposições, dando em troca incondicional apoio ao presidente da República como responsável, na esfera nacional, pela política econômica e pelo encaminhamento do processo sucessório. […]

A avaliação de Rui Barbosa a respeito dessa política seria frontalmente oposta à do governo. Assim como se opusera radicalmente aos desmandos autoritários de Floriano Peixoto, Rui saltou de imediato para a oposição a Campos Sales. Entendeu que o referido artifício [a ‘política dos governadores’], além de não resolver o problema de fundo, que era a instabilidade latente no sistema, era de fato malicioso, isto é, contrário ao ethos republicano que se desejava construir.” (p. 87-89)

Parlamentarismo ou presidencialismo?
“Tinha Rui perfeita consciência de que regimes formalmente democráticos podem resvalar para o despotismo, e dessa convicção é que se alimentava, no essencial, a sua preferência pela forma parlamentar de governo. Tendo Rui, adepto do parlamentarismo ao tempo da monarquia, exercido papel de relevo na elaboração da Carta de 1891, que implantou um presidencialismo calcado no modelo norte-americano, natural seria que suas manifestações verbais sobre essa questão não revelassem muita consistência. O fato, entretanto, é que revelavam.” (p. 93)

“[…] Rui não preconizou o presidencialismo por achá-lo esplêndido, mas porque não via alternativa; e que só o aceitou com a condição de que nos empenhássemos em aqui também implantar um sistema de ‘freios e contrapesos’ como o que foi previsto pela Constituição norte-americana, incluindo não apenas a federação, mas também um Judiciário altivo e independente. Mas as três décadas que se seguiram à proclamação da República convenceram-no de que o novo regime sucumbia cada vez mais à autocracia presidencial, começando com os arroubos despóticos de Floriano Peixoto, passando pela ‘política dos governadores’ de Campos Sales e daí chegando às truculências da presidência Hermes da Fonseca. Essa trajetória o levaria de volta, e com crescente veemência, à tese parlamentarista.” (p. 96)

“Para Rui […] a pior forma de governo seria uma República Presidencial na qual o Executivo contasse com uma maioria obediente no Congresso e o Judiciário não tivesse autoridade para se contrapor aos desmandos que daí provavelmente decorreriam. Não por acaso, manifestou-se ele reiteradas vezes, não apenas a respeito do Judiciário […] mas também sobre o que lhe parecia ser o inevitável encolhimento político, moral e intelectual do Legislativo no regime presidencial.” (p. 96-97)

Rui e o sufrágio universal
“É oportuno lembrar que Rui Barbosa, já no discurso de 1880 sobre a Lei Saraiva, defendia a limitação do sufrágio aos alfabetizados, afirmando que o direito de voto deveria depender da ‘verificação de certos rudimentos de instrução primária no alistado’. […] Na ótica atual, a tendência é avaliar como elitista essa posição de Rui Barbosa, contrária ao voto do analfabeto. […] Convém lembrar, entretanto, que essa posição contrária ao voto do analfabeto trazia a chancela de ninguém menos que John Stuart Mill; que predominava amplamente entre a elite política brasileira daquele tempo, e que deve também ter sido predominante no legislativo brasileiro durante os primeiros 96 anos da República, já que somente em 1985 seria alterada a norma excludente originária da Constituição de 1891, e concedido, finalmente, o direito de voto ao analfabeto.” (p. 107)

A construção institucional
“O que mais impressiona numa releitura contemporânea de Rui é o agudo contraste que ele mesmo se incumbiu de estabelecer entre a sua visão e a de seus críticos no tocante à construção institucional da democracia. Para Rui, a construção institucional era o alfa e o ômega, ou quase isso. Se quiséssemos construir uma democracia, mesmo em dilatado horizonte de tempo, o ponto de partida haveria de ser a boa organização do arcabouço eleitoral, partidário, parlamentar, judiciário e executivo, e uma dedicação leal e sincera de todos aos procedimentos, ritos e valores próprios a cada um desses segmentos institucionais.” (p. 112)

“Quando percebeu que a República se acomodava a padrões de baixíssimo desempenho, Rui decidiu-se a sacudi-la de sua letargia. A meu juízo, essa atitude de Rui decorria consistente e previsivelmente de seu pensamento institucional. Foi provavelmente por não a haverem examinado por este prisma que até liberais com a densidade intelectual de um Afonso Arinos acabaram interpretando-a como um traço quase psicológico – pouco mais que uma propensão individual de Rui ao quixotismo.” (p. 113)

A marca de Rui Barbosa
“Como ministro da Fazenda, [Rui Barbosa] deixou no mínimo o esboço de um processo de transformação econômica. Como candidato à presidência, em 1919, expôs com abrangência e excepcional franqueza o futuro nada róseo que o Brasil teria pela frente, se não implementasse um abrangente programa de reforma social. Mas foi sobretudo na área política que Rui deixou sua marca. Seu grande tema é a ‘republicanização da República’: a construção da esfera pública, a organização política e institucional do país, a promoção da civilidade e da transparência nos embates políticos.” (p. 116)

Rui e a autonomia do Judiciário
“[…] extinta a opção da monarquia parlamentar, entendeu Rui que o modelo político brasileiro haveria de ser um presidencialismo de tipo norte-americano, com um Judiciário autônomo, ao qual seria atribuída a prerrogativa de interpretar em última instância a Constituição.” (p. 117)

“[…] o que Rui tinha em mente quando defendia a ‘independência’ do Judiciário não era um ‘governo de juízes’, e sim a ideia de um Judiciário com força suficiente para se contrapor ao Executivo e ao Legislativo sempre que necessário, a fim de conter-lhes os desmandos. E dizer isto, observe-se, não era dizer pouco, naqueles primórdios agitados do regime republicano, sabendo-se que o bom desempenho das instituições foi não poucas vezes ameaçado: primeiro pelo ‘florianismo’ e pelo castilhismo, depois pela exacerbação oligárquica ensejada pela ‘política dos governadores’, depois pelas intervenções ditas ‘salvadoras’ do Executivo federal nos estados, e finalmente por movimentos de contestação armada e frequente recurso, pelo Executivo federal, ao estado de sítio.” (p. 118-119)

O grande legado de Rui
“[Decorridos 80 anos da morte de Rui Barbosa,] o Brasil tem perseverado na tentativa de construir um arcabouço institucional bem próximo ao que Rui imaginara: 1) um presidencialismo assemelhado ao norte-americano, mantendo como segunda opção a hipótese de um parlamentarismo racionalizado e estável, e não a de um regime autoritário permanente, cuja legitimação é manifestamente inviável numa sociedade como a brasileira; 2) uma federação vigorosa, e agora plenamente configurada, inclusive com ampla autonomia municipal; 3) um Judiciário autônomo – nos limites, naturalmente, do mandamento constitucional da interdependência dos três poderes e sem prejuízo de mecanismos de controle externo que venham a ser eventualmente instituídos – e tendo agora a seu lado, sob a Constituição de 1988, a novidade institucional de um Ministério Público com atribuições igualmente expandidas.” (p. 120-121)

“[…] voltemos a Rui Barbosa – deixando de lado aquelas estéreis tentativas de interpretar a sua obra à luz de supostos mimetismos culturais ou de estreitos interesses de classe e atentando para o que ele explicitamente nos diz. Quem fizer isso certamente constatará que suas diferentes facetas de advogado, jurista, político, jornalista e orador parlamentar na verdade se interligam e compõem um denso e articulado discurso, cujo objeto é a formação da esfera pública e a construção institucional da democracia no Brasil. Para mim, é este o cerne invariável do pensamento e da ação política de Rui Barbosa, o fio condutor que mais efetivamente nos guia no enorme labirinto de seus discursos e escritos, desde os do fim do Império, sobre a subordinação da Monarquia ao princípio democrático, o imperativo da federação e a imprescindível reorganização do processo eleitoral, passando por aquele complexo conjunto de escolhas com que ele se deparou ao tornar-se protagonista de primeiro plano na transição da monarquia à República e culminando no ingente esforço que desenvolveu para reformar a Constituição de 1891 e tentar evitar a deterioração institucional da nascente República.” (p. 123)