Rui

100 anos depois…

 

Pensamento

Rui Barbosa na atualidade

 

Cem anos após seu falecimento, pode-se constatar que ideias e propostas de Rui estão atuais e alguns problemas da sociedade brasileira, por ele apontados, ainda esperam solução.

 

A escravidão e a questão rural

Rui se preocupou, desde a juventude, com a causa abolicionista. Propôs o projeto de libertação dos filhos de escravizadas de propriedade dos maçons, ideia precursora da Lei do Ventre Livre. A seguir, redigiu o projeto Dantas sobre a emancipação dos escravizados aos 60 anos, que depois se converteu (com cortes) na Lei dos Sexagenários.

A “libertação dos escravos” historicamente aconteceu, mas Rui observou que a Lei Áurea não foi suficiente para uma abolição total, assim , até o fim da sua vida, foi um severo crítico de uma abolição feita “sem uma política de recapacitação e de integração social dos ex-escravos.” (Bolívar Lamounier. Rui Barbosa e a construção institucional da democracia brasileira. In: —-. Rui Barbosa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. p. 67).

Rui queria uma real integração das pessoas que tinham sido escravizadas à sociedade, queria que as mesmas adquirissem não só a liberdade, mas também a cidadania. Hoje em dia, as pessoas negras ainda lutam por direitos e igualdade, embora várias medidas venham sendo adotadas, a partir da luta desse grupo social.

> Trecho sobre a abolição da escravidão e suas sequelas

 

Se a abolição não resolveu definitivamente a questão dos ex-escravizados, também não transformou a realidade brasileira. Josaphat Marinho (Rui Barbosa: valores da personalidade e da obra) salienta que já em 1888, Rui “advertiu que o abolicionismo não era ‘o termo de uma aspiração satisfeita’, mas ‘apenas o ponto inicial de uma trajetória sideral’. Apontou então como programa de reformas: ‘a liberdade religiosa, a democratização do voto, a desoligarquização do Senado, a desenfeudação da propriedade e a federação’. Recordando esse pensamento em 1942, João Mangabeira sublinhou que o programa de Rui, de ‘desenfeudação da propriedade’ seria ‘avançado’ naquele ano. Podemos dizer que o é ainda hoje, se atentarmos em nossa realidade quanto à exploração da terra, às injustiças nela praticadas e à reforma agrária em soluços.” (p. 14)

 

A educação e a construção do país

Rui acreditava no aperfeiçoamento social e político por meio de um longo processo educativo e categórico, quando declarou: “Ao nosso ver, a chave misteriosa das desgraças que nos afligem, é esta, e só esta: a ignorância popular, mãe da servilidade e da miséria.” [Reforma do ensino primário… Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Saúde, 1947. p. 121. (Obras Completas de Rui Barbosa. v. 10, 1883, t. 1).]

Na Câmara do Império, como relator da reforma do ensino (primário, secundário e superior), produziu dois extensos pareceres sobre a organização nacional na área da educação. Pregou a alfabetização das massas (em processo até os dias atuais) e o princípio de liberdade no magistério. Josaphat Marinho (ibidem) ressalta a importância desse princípio: “No parecer a respeito do ensino secundário e superior, [Rui] observou que ‘o direito de enunciar e discutir livremente todas as opiniões é inerente à ciência. O Estado não tem competência para definir ou patrocinar dogmas; e se a tem, não abra estabelecimentos científicos; porque a existência dessas instituições é incompatível com a de crenças privilegiadas. Da condição essencial à ciência é o não obedecer a concepções a priori, duvidar do que não seja metodicamente averiguado, e só adotar a realidade verificada segundo os preceitos rigorosos da lógica experimental’.” (p. 13)

Rui adotou o lema “Educação é preparação para a vida completa e vida completa exige educação integral”, preocupando-se com a educação do corpo e do espírito. Em seus pareceres, especificou as modalidades: educação artística, educação moral e cívica, educação econômica, educação para a saúde, para o trabalho e para o lar. Esses pareceres deram a Rui o título de precursor, no Brasil, da Educação Física, do ensino musical, do desenho e dos trabalhos manuais, sendo os dois últimos, na visão de Rui, básicos para o ensino industrial e consequente desenvolvimento do país.

> Trecho sobre a educação e a construção do país

 

Rui, a língua e os livros

Ciente do valor da educação, Rui era um incansável estudioso, amante dos livros e da língua. Entre as suas muitas contribuições, podem ser citadas:

– Contribuição para o Código Civil

Presidente da Comissão Especial da revisão do Código Civil no Senado, Rui elaborou o parecer sobre a redação feita pelo seu mestre, professor Ernesto Carneiro Ribeiro. Critica-lhe a linguagem e propõe emendas a quase todos os artigos, estabelecendo-se uma das maiores polêmicas de gramática e estilo travadas no Brasil, que gerou um importante trabalho da filologia brasileira: a Réplica.

 

– Rui tinha um cuidado especial com o léxico,

não só quanto ao seu emprego, como também em uma meticulosa coleta de dados. Seus exemplares do Novo dicionário da língua portuguesa, de Cândido de Figueiredo, em três diversas edições, são todos anotados. Rui Barbosa ia “completando” os livros com novas acepções, variantes regionais, abonações em textos clássicos (como Padre Antônio Vieira) e textos de autores contemporâneos (como Monteiro Lobato).

 

– Seu amor pelos livros legou à posteridade uma biblioteca de 35.000 volumes,

hoje parte do acervo da Fundação Casa de Rui Barbosa, e importante fonte de pesquisa para o público, como anteviu o cônsul argentino no Rio de Janeiro, em oração durante o sepultamento de Rui: “Rui Barbosa não desaparece, senhores: ficam suas obras, seus discursos, seus escritos forenses, suas conferências, sua ação parlamentar, sua biblioteca de incalculável mérito científico, político, literário e social, manancial inesgotável de eterna corrente, ao qual acudirão as gerações presentes e futuras, para beberem em sua linfa cristalina, os conselhos, a doutrina, a ciência, a experiência e receberem as inspirações que esse espírito genial e prodigioso derramou em sua longa e fecunda passagem pelo mundo.”

 

A guerra e a paz. A igualdade jurídica das nações

 

Rui Barbosa sempre se preocupou com a paz no Brasil e no mundo. Antes mesmo das duas famosas embaixadas a de Haia e a de Buenos Aires já se manifestava sobre a questão.

> Trecho sobre a guerra e a paz – a igualdade política entre as nações

 

– A 2ª Conferência da Paz, em 1907,

em Haia, foi um dos momentos culminantes da sua carreira. Designado embaixador extraordinário e plenipotenciário e delegado para representar o Brasil , deixou a sua marca, sendo depois conhecido como “águia de Haia”.

Rui é reconhecido publicamente como um dos sete sábios da Conferência da Paz
Rui é reconhecido publicamente como um dos sete sábios da Conferência da Paz

Durante os debates sobre a formação de uma corte permanente de justiça internacional, Rui Barbosa enfrentou corajosamente os representantes das grandes potências Inglaterra, Alemanha e Estados Unidos , que propunham a criação de um Tribunal de Arbitramento formado pelas nações mais fortes. Sustentou que a escolha dos países segundo critérios que levassem em conta o poderio militar estimularia uma corrida armamentista, direcionando o curso político do mundo para a guerra, o que contrariava os objetivos daquele encontro.

Rui foi além, provocando impasse nas discussões ao apresentar a tese de que, perante a ordem jurídica internacional, todos os Estados são iguais e soberanos. Fortes ou fracos, ricos ou pobres, grandes ou pequenos, o que estava em jogo era a igualdade e a soberania.

– Durante a Primeira Guerra Mundial, em 1916,

Rui foi novamente nomeado embaixador para representar o Brasil nas comemorações do primeiro centenário da independência da Argentina. Na Faculdade de Direito e Ciências Sociais de Buenos Aires, proferiu a conferência “O dever dos neutros” ou “Os conceitos modernos do Direito Internacional”, onde protestou contra a neutralidade inerte e surda-muda dos países impassíveis diante das atrocidades da guerra e apregoou como princípio verdadeiro o da “neutralidade vigilante e judicativa”. Rui observou a existência de “nações de presa” e de “nações de pasto” e registrou sua indignação com o conceito de “guerra preventiva”, ainda utilizado pelas nações “de presa”, como os EUA em 2003, para justificar a segunda guerra contra o Iraque.

> Trechos de “Os Conceitos Modernos do Direito Internacional”

 

Rui, a reforma constitucional e a questão social

Durante a segunda campanha eleitoral à presidência em 1919, Rui realiza comícios e conferências, propondo reforma da Constituição e defesa da questão social. Em 20 de março desse ano, na conferência “A questão social e política, no Brasil”, afirma que as constituições “são consequências da irresistível evolução econômica do mundo […]. A inflexibilidade individualista dessas cartas, imortais, mas não imutáveis, alguma coisa tem de ceder ao sopro da socialização, que agita o mundo.” [Campanha presidencial. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956. p. 119-120. (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. 46, 1919, t. 1).]

Sobre isso, Josaphat Marinho em Rui Barbosa: valores da personalidade e da obra (2001, p. 12-13), comenta: “O talento inquieto e o estudo incessante impeliam-no, com frequência, a divisar o futuro, rompendo as peias do conservadorismo, desprezando o direito estabelecido em busca do direito em formação. Não obstante ter sido o artífice principal da Constituição de 1891, sustentou, até com sacrifício de posições políticas, a necessidade de reforma de seu texto, à base de falhas encontradas ou para impedir os erros praticados à sua sombra. […] Visava à atualidade do conhecimento e da norma, e não à sua petrificação.”

Durante essa conferência, Rui abordou a questão social. Pela primeira vez, um político de sua envergadura abordava em uma plataforma eleitoral o problema da conciliação entre capital e trabalho. “Trabalho e capital não são entidades estranhas uma à outra, que lucrem, de qualquer modo, em se hostilizar mutuamente. Assim como do trabalho depende o capital, assim, e na mesma proporção, do capital depende o trabalho. São as metades que, reciprocamente, se inteiram de um organismo, cujos dois elementos viventes não se podem separar sem se destruírem.” [Campanha presidencial. Rio de Janeiro: Ministério da Educação e Cultura, 1956. p. 118-119. (Obras Completas de Rui Barbosa, vol. 46, 1919, t. 1).]

Pode-se observar a modernidade do pensamento de Rui pela sua plataforma eleitoral: são propostas que somente começaram a se concretizar duas décadas após e muitas delas até hoje não foram plenamente atendidas.

A questão social na plataforma eleitoral de Rui Barbosa:

1 Construção de casas para operários
2 Proteção ao trabalho de menores
3 Limitação das jornadas, em especial do trabalho noturno
4 Igualdade salarial para ambos os sexos
5 Amparo à mãe operária e à gestante; licença maternidade
6 Indenização para acidentes de trabalho
7 Legalização do trabalho agrícola
8 Seguro previdenciário.

Pode-se finalizar com a análise na obra citada, do advogado e professor Josaphat Marinho: “[…] toda a obra intelectual de Rui Barbosa, elaborada entre combates, repousa no espírito das leis e visa à defesa de direitos individuais, políticos e sociais. Sobrevive, é atual, precisamente porque se insere no quadro educativo de proteção dos direitos humanos, sem exclusão nem preconceito.” (p. 24)