Rui

100 anos depois…

Josaphat Marinho
“Atualidade do pensamento jurídico de Rui Barbosa”

Por ocasião dos 150 anos de nascimento de Rui Barbosa, o Conselho Federal da OAB houve por bem comemorá-los convidando o advogado e professor Josaphat Marinho a proferir uma palestra, cujo título foi “Atualidade do pensamento jurídico de Rui Barbosa”.

Desta palestra, publicada no livro Rui Barbosa: valores da personalidade e da obra. Brasília: OAB, Conselho Federal, 2001, p. 11-24, transcrevem-se aqui algumas passagens, especialmente esclarecedoras, sobre a permanência de Rui Barbosa.

 

Relevo do tema

“Qual será a atualidade [do pensamento de Rui Barbosa] no domínio do Direito, transcorridos 76 anos de sua morte e diante das transformações da sociedade e da cultura neste século?” (p. 12)

Dimensão da obra de Rui

“Dotado [de] visão larga e objetiva, produziu ideias e conceitos e propiciou a criação de instituições que sobrevivem às mudanças sociais, econômicas e políticas.” (p. 12)

“O talento inquieto e o estudo incessante impeliam-no, com frequência, a divisar o futuro, rompendo as peias do conservadorismo, desprezando o direito estabelecido em busca do direito em formação. Não obstante ter sido o artífice principal da Constituição de 1891, sustentou, até com sacrifício de posições políticas, a necessidade de reformas de seu texto, à base de falhas encontradas ou para impedir os erros praticados à sua sombra. […] Visava à atualidade do conhecimento e da norma, e não à sua petrificação.” (p. 12-13)

Liberdade de ensino

“Relator da reforma do ensino, na Câmara do Império […] proclamou o princípio de liberdade no magistério. No parecer a respeito do ensino secundário e superior, observou que ‘o direito de enunciar e discutir livremente todas as opiniões é inerente à ciência. O Estado não tem competência para definir ou patrocinar dogmas; e se a tem, não abra estabelecimentos científicos; porque a existência dessas instituições é incompatível com a de crenças privilegiadas. Da condição essencial à ciência é o não obedecer a concepções a priori, duvidar do que não seja metodicamente averiguado, e só adotar a realidade verificada segundo os preceitos rigorosos da lógica experimental’.” (p. 13)

“Sem nunca ter sido professor, antes ou depois desse Parecer, Rui, já aos 33 anos de idade, reivindicava condição elementar ao ensino decente, agora consagrada nas Cartas da democracia social.” (p. 13)

Abolicionismo e desenfeudação da propriedade

“Já em 1888, [Rui] advertiu que o abolicionismo não era ‘o termo de uma aspiração satisfeita’, mas ‘apenas o ponto inicial de uma trajetória sideral’. Apontou então como programa de reformas: ‘a liberdade religiosa, a democratização do voto, a desoligarquização do Senado, a desenfeudação da propriedade e a federação’. Recordando esse pensamento em 1942, João Mangabeira sublinhou que o programa de Rui, de ‘desenfeudação da propriedade’ seria ‘avançado’ naquele ano. Podemos dizer que o é ainda hoje, se atentarmos em nossa realidade quanto à exploração da terra, às injustiças nela praticadas e à reforma agrária em soluços.” (p. 14)

A Federação

“Defensor da federação antes mesmo de tornar-se republicano, […] lutava por instituí-la na pureza de seu conceito. […] Durante a feitura da Constituição de 1891, reagiu aos ultrafederalistas, ponderando: ‘A federação pressupõe a União, e deve destinar-se a restabelecê-la. […] Os que partem dos estados para a União, em vez de partir da União para os estados, transpõem os termos do problema. […] Sob o regime federal, a União não é mais que a substância organizada dos estados, a individualidade natural constituída por eles, desenvolvendo-se pelo equilíbrio de força de todos.'” (p. 14-15)

Construindo o regime de 1891

“Sob o governo de Floriano Peixoto, seu amigo pessoal, reagiu aos atos arbitrários. Condenou-os politicamente e impetrou medidas judiciais para restaurar direitos ofendidos, sobretudo de adversários e desafetos. No habeas corpus de 1892, quando pela primeira vez se confrontou, no Supremo Tribunal Federal, a autoridade da Constituição com os poderes do presidente da República, Rui buscava fixar princípios basilares do regime em formação. A superioridade da Constituição sobre leis e atos; a delimitação dos poderes no estado de sítio e a suspensão de seus efeitos com a cessação dele; a valorização do habeas corpus como garantia de direitos individuais, e além da segurança da liberdade de locomoção, pela inexistência de remédios específicos; o reconhecimento da competência do Poder Judiciário, notadamente do Supremo Tribunal, para interpretar o Estatuto Maior, essas teses, ora aceitas, ora rejeitadas, acabaram por ser vitoriosas e se incorporaram a cartas políticas posteriores, até a atual.” (p. 16-17)

Conceito de igualdade

“Não é de estranhar […] que em 1921, na “Oração aos Moços”, dois anos antes de morrer, [Rui] transmitisse aos bacharelandos de São Paulo profunda lição de interpretação da vida social e política, para aplicar bem a lei. Embora a Constituição de 1891 declarasse a igualdade de todos perante a lei (art. 72, 2o), Rui percebia a distância entre o valor formal e o valor real da norma. […] ensinou que ‘a regra da igualdade não consiste senão em quinhoar desigualmente aos desiguais, na medida em que se desigualam. Nesta desigualdade social, proporcionada à desigualdade natural, é que se acha a verdadeira lei da igualdade.’ Hoje esse entendimento é preponderante […].” (p. 19)

Retroatividade da lei

“Não se embaraçando em dogmas, apesar de fiel a princípios, Rui procurava sempre imprimir à lei exegese compatível com seu fim efetivo, coincidente com a defesa legítima da pessoa, ou com o interesse coletivo. Para tanto, afastava os obstáculos provenientes da leitura ligeira, ou interessada dos mandamentos criados. Por estipular a Constituição de 1891 (art. 11, § 3o) que era vedado ‘prescrever leis retroativas’, não admitia que aí se estabelecera norma proibitiva absoluta, que não tolerasse temperamento. ‘Leis há – explicou, baseado em Saredo – fatalmente, constitucionalmente retroativas. Nesta classe estão necessariamente as que ‘estabelecem mitigação de penas, extensão de direitos, ou reintegração de capacidade’. Lembrando que ‘retroativas foram as leis que extinguiram a feudalidade, a servidão, a dízima, o cativeiro’, advertiu que ‘seriam perfeitamente constitucionais perante o nosso direito’, ‘porque melhoravam a condição geral das pessoas, extinguiam opressões, reintegravam o homem na sua capacidade inalienável’.” (p. 19-20)

Direito privado

“[…] certo é, por seus trabalhos mais conhecidos nesse domínio, que as tendências vitais foram as mesmas expostas no Direito Público. Não examinava ele texto positivo ou problema a que não infundisse noções essenciais da ciência do direito, em linha evolutiva. Era uma resultante natural do estudo contínuo e do poder criador.” (p. 22)

Como exemplo, porém, da capacidade de Rui expor e discutir matéria na área do Direito Civil, justificando posição inovadora, qual o fazia na seara do Direito Público, recorde-se a controvérsia derredor da ‘posse de direitos pessoais’. Nas razões de advogado, tanto quanto nos artigos no Jornal do Comércio, o que escreveu em defesa dos lentes da Escola Politécnica, do Rio de Janeiro, revela o conhecimento seguro da doutrina e da jurisprudência, inclusive no direito comparado, em legitimação da posse dos direitos pessoais.” (p. 22-23)

A obra de Rui e o direito moderno

“[…] toda a obra intelectual de Rui Barbosa, elaborada entre combates, repousa no espírito das leis e visa à defesa de direitos individuais, políticos e sociais. Sobrevive, é atual, precisamente porque se insere no quadro educativo de proteção aos direitos humanos, sem exclusão nem preconceito.” (p. 24)