Rui

100 anos depois…

Carlos Drummond de Andrade, sobre os 50 anos da morte de Rui Barbosa

A crônica abaixo, de Carlos Drummond de Andrade, foi publicada no Jornal do Brasil, no dia 1º de março de 1973, exatamente 50 anos após o falecimento de Rui.

Rui, naquele tempo

Rui Barbosa, que volta glorioso aos jornais, vencidos os prazos do silêncio — bem que o conheci, sem nunca tê-lo visto. Era uma presença em Minas Gerais, no começo do século, sob o ardor da campanha civilista, e nos anos que se seguiram ao seu malogro.

Tanto quanto podem valer as impressões da infância, recolhidas em pequeno meio provinciano, recordo que não havia neutros naquele tempo. Éramos todos, meninos inclusive, civilistas, quer dizer, ruístas. Hermistas seriam apenas os funcionários estaduais e municipais, sujeitos a represálias do Governo se aderissem à corrente da Oposição. Quero crer que os havia sinceramente adeptos do Marechal Hermes e de Pinheiro Machado, pois afinal são tão variadas as inclinações humanas, mas seriam poucos.

A alma da cidade (se se entende por essa expressão o conjunto de moradores de maior ou menor hierarquia social, identificados pelo estilo de vida paroquial vigente na época, excluídas as camadas mais pobres, sem acesso ao jogo político), a alma da cidade latejava de entusiasmo diante da figura mirrada e feia de um homem que encarnava os princípios democráticos, em contraposição à candidatura castrense, aceita, que remédio? pelas oligarquias regionais.

Não se percebia então — e não havia de ser no interior que brotasse o analista ou o futurólogo capaz de anunciá-lo — que o episódio era apenas a primeira de uma série grave de crises chamadas a denunciar a fragilidade da estrutura republicana, com seus artificialismos de base e suas hipocrisias de cúpula. Via-se, sentia-se a situação como a luta entre o mocinho e o bandido, e obviamente tomava-se o partido do mocinho.

E como falava bem o mocinho, cuja pistola era o verbo. Boca-de-ouro, seus discursos de campanha nos estados — oh, os de Ouro Preto e Belo Horizonte — ou de crítica no Senado, espraiavam-se em pelo menos cinco horas, enchendo páginas do Correio da Manhã. Não havia rádio, tinha-se que ler aquilo tudo pelo dia afora, se é que algum corajoso o lesse. Mas a sensação de força, de bravura e eletricidade moral era unânime. Rui Barbosa representou o melhor, o mais puro e desinteressado pensamento do homem da rua, desencantado da engrenagem política montada no país e esperançoso (utopicamente) de erigir um Governo civil inspirado na justiça, na liberdade, na representação autêntica, na virtude.

Foi nossa paixão, a dos grandes e a dos pequenos, contagiados pelo exemplo dos grandes, mesmo que não entendêssemos bem o que se estava passando; foi o herói, o par de França, o quixote, o sujeito que dizia verdades ásperas e — coisa inconcebível hoje em dia — em português de lei, com fartura de sinônimos raros e construções preciosas. Era ainda um tempo de certo respeito à língua portuguesa, e de prestígio do bacharel em Direito. A eloquência torrencial levantava-se contra os opressores, e iluminava o ano enfrentando os gigantes do poder, em defesa dos fracos, dos esbulhados de direitos, dos presos sem mandato e sem explicação. O advogado valorizava o político, já realçado pelo orador, e tudo isso compunha uma imagem popular, tão diversa das que hoje conquistam a simpatia das massas. Era austero, compenetrado, sua ironia não convidava ao riso e excluía a familiaridade. Nem por sombra, seus fanáticos pensariam em dar-lhe palmadinhas nas costas, como aos líderes americanos. Dava-se ao respeito, e não obstante foi amado, de amor cívico ardente, por milhares de brasileiros alfabetizados e crentes na quimera da regeneração política.

Na derrota, ele cresceu ainda mais. De 1910 a 1914 o Brasil teve dois presidentes: um de fato e outro de consciência, entre seus livros e papéis da Rua São Clemente, e daí para a tribuna do Senado ou perante o Supremo Tribunal Federal, postulando, verberando, exigindo o cumprimento da lei, já menos como político do que como defensor dos direitos humanos.

Esta a imagem de Rui guardada por uma criança mineira. Continua viva, como gravura que o tempo não patinou. Surgirá outra assim, adaptada às condições do nosso tempo?